sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Felicidade Interna Bruta

* Finalmente, depois de alguns meses, nasceu um texto full da minha experiência na India e Butão, generosamente publicada na última edição da Revista de Marketing Industrial. Obrigada, Gerson Ferreira Filho, editor e amigo. Obrigada, Monique, por teres compartilhado este sonho lindo da viagem comigo.
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Eu fui até o Butão tentar desvendar a tal Felicidade Interna Bruta. Não era a viagem dos meus sonhos. Sequer foi planejada. Ao menos não por mim. Entrei de carona nos planos de uma amiga e acabei embarcando, literalmente, numa aventura num país desconhecido e praticamente intocado.Antes, pra aquecer, estive na India. Melhor, nas diferentes Indias que formam a India. Muitas semelhanças com nosso Brasil enorme e cheio de histórias. Dehli, cosmopolita, intensa, agitada, estridente, abafada, sorridente. O Parque Nacional de Kaziranga, no Assam, nordeste, com novos rostos e aventuras. Lá andei de elefante, de jipe, dormi numa antiga casa de caça inglesa que fica boa parte do ano inundada, vi enxames de vagalumes à noite e, acreditem, o tigre. Assim, na minha frente, depois de mais de quatro horas de muita paciência.

De lá, outro extremo ainda indiano: o Darjeeling, na parte ocidental, cadeia inferior do Himalaia, com suas plantações poéticas de chás, rostos ainda mais exóticos, macacos por todos os lados, temperaturas baixas, templos budistas e hinduistas convivendo no mesmo espaço. Para completar, uma experiência inexplicável com um monge que nos chamou para conversar e nos deu uma aula de vida - “You have to share all the things”. “We have lots of lifes to change all the lifes”, “The life is like a monkey. It's not here. Try to remind the power of now” - só para citar alguns insights. Bom aquecimento para desplugar a cabeça do Brasil e preparar a minha alma para entrar no território desconhecido butanês.

Por indicação dos nossos guias (verdadeiros irmãos mais velhos, prestativos, preocupados, atenciosos – uma aula de cortesia e atendimento), entramos no Butão de carro. Tudo foi planejado, pensado. Chegamos em meio a uma tempestade de areia num final de tarde bem estranho, já ensaiando algumas palavras em butanês com nosso guia e grande companheiro de jornada, o Sonam. Chegou todo sorridente contando contos e causos, falando da paixão dos butaneses pelo futebol, da medicina, da invasão de nepaleses no sul do Butão em 1999 (episódio raro e marcante), do rei, das rainhas, do Himalaia, das roupas, dos templos, da vida, enfim. No dia seguinte, bem cedo, uma grande aventura e muitos quilômetros de estrada pela frente. Penhascos, paisagens inesperadas, neve ao fundo, cachoeiras, vento fresco, flores e cores.

A palavra Butão significa “terra do dragão”. Um belo lugar para ele se esconder, encravado entre a China, a norte e oeste, e a India, a leste e sul. Estivemos em quatro cidades e alguns vilarejos, com destaque para Thimpu, a capital, com pouco mais de 50 mil habitantes, e Paro. segunda em importância no território butanês.
Como a viagem foi repentina, nã pude ler a respeito nem me informar tanto quanto faria normalmente antes de uma viagem. Conversei com um ou outro, mas entrei o mais despida possível de informações e de pre-conceitos. Construi, com isto, um Butão muito meu, talvez não compartilhado da mesma forma por outros aventureiros que lá estiveram.
Tomei a liberdade de selecionar alguns episódios que mais me marcaram. Difícil eleger. Foram muitos.

1) Hábitos (roupas, comidas, casas)
O Butão tem uma cor bem própria. Vermelho com amarelos marcantes formam a bandeira e também boa parte dos pigmentos das vestimentas típicas que tão lindamente cobrem a população. Praticamente todo mundo veste os trajes locais, numa dança deliciosa de tons e tecidos. Há muito de artesanato local nos principais pontos das cidades e um exercício, mais uma vez, de extrema paciência e dedicação daqueles que tecem os tais panos. As comidas, nem tão exóticas nem tão apimentadas quanto as indianas (come-se muita batata e legumes por lá), têm um outro quê de interessantes: são ingeridas, quase sempre, com as mãos. Há um arroz vermelho bem típico, encontrado em todo canto, servido numa cumbuca simpática e devidamente amassado com os dedos para formar uma espécie de bolinho antes de ser levado à boca. Os butaneses apreciam a comida com outros sentidos. Apalpam, sentem, experienciam a arte de comer.

2) Felicidade Interna Bruta
Fui apresentada a Dasho Karma Ura em uma situação muito além da que eu poderia imaginar. Mestre em Política, Filosofia e Economia pela Universidade de Oxford, Inglaterra, e vice-presidente do Conselho Nacional do Butão, Presidente do Centro para os Estudos do Butão fundado pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) para formular as análises estatísticas do FIB – um indicador para a Felicidade Interna Bruta. Ele me recebeu na sua casa, para um jantar em família. Graças a um amigo em comum no Brasil, fomos juntas, eu e Monique (aquela que me convidou para a viagem). Imaginava, quando soube do link com este amigo da USP, que conseguiríamos uma “conferência” com ele no seu gabinete. Braço direito do rei, ele não teria tempo para receber turistas. Não só teve, como o usou sem pressa conosco, numa conversa deliciosa, regada a uma bebida típica (e forte) de boas vindas (uma espécie de whisky quente – ai de quem fizesse desfeita) e comida em abundância. Pra nós, visitantes, talheres ocidentais. Ao redor da mesa, a esposa, a filhinha curiosa e cheia de questionamentos (fluente em inglês, contou o que devia e o que não devia, divertindo e preocupando o pai).
Falando so bre a tal Felicidade Interna Bruta, disse: “It's a very old idea, not so easy to practice”. “A world for people, and not for things”. Basicamente, e muito a simplificadamente, a conversa girou em torno da busca de boas relações com as pessoas, de estar bem com sua consciência e saber balancear o seu tempo 24 horas por dia. Ter saúde, meditar e trabalhar de 5 a 6 horas por dia faz parte do tal jeito butanês de encarar a felicidade.
Na verdade, não há muito mais a ser feito por lá, nada que ocupe mais que 5 horas diárias. O país vive muito de agricultura. Não tem indústrias. Ainda mantém um estilo pacato, parece ter outro relógio para medir o tempo. O trabalho bem manual, mas em pouca quantidade, e muito tempo livre faz parte da rotina do país. Claro, o FIB é bem mais que isto. Tem indicadores, métricas, estudos. Cheguei com meu caderninho em punho para anotar tudo, pegar dados, estatísticas. Aí relaxei diante da paz daquele homem e apenas ouvi. Em momento algum, ele falou da “magia” do FIB e do quão maravilhoso ele é. Apenas contou no que acredita e como imagina que isto pode virar prática.

3) Os templos
Das montanhas mais remotas surgem inesperados templos budistas lindamente enfeitados e cheios de simbolismos. Ao redor (e por toda parte), centenas bandeiras de orações coloridas completam a paisagem e, embaladas pelo vento, completam o cenário de paz e tranquilidade. Cada templo tem uma história e não faltam monges e simpáticos moradores locais para explicarem suas sutilezas e rituais.
Num deles, o da fertilidade, desvendado depois de uma longa caminhada por meio de trigais, há um ritual um tanto inusitado para nossos padrões ocidentais: depois de sortear algumas moedas, o visitante chega a um número e, dependendo de sua “sorte” recebe uma benção da fertilidade, uma espécie de sinal da cruz feito por um monge com um falo de madeira nas mãos.
E os rituais não param por aí. Na chegada a cada templo, faz-se três voltas no sentido horário pelo lado de fora, como um sinal de respeito antes de entrar e fazer as orações. Há ainda as rodas de orações, grandes espaços ao ar livre com imensas esculturas cilíndricas cheias de textos e mantras impressos. Num dos templos, vivem os velhinhos butaneses que, com a chegada da idade avançada, migram das montanhas para a cidade e passam boa parte dos seus dias girando as rodas de orações. Já que não têm nada para fazer, espalham aos quatro ventos mensagens positivas para a Humanidade.

4) As artes
Os butaneses investem muito em arte. As criancas estudam em turno integram e intercalam atividades tradicionais com aulas de escultura, pintura, desenho, teatro, marcenaria. As casas em si já são verdadeiras obras, construídas colaborativamente e pintadas a mão, formando mosaicos e desenhos vibrantes e marcantes. As atividades manuais ainda estão bem presentes nas comunidades. Os butaneses são sensíveis e têm um bom olho olho para a estética.

5) A “ocidentalização” butanesa
Ainda são poucas as influências externas no cotidiano butanês. É muito recente a abertura do país para o turismo e para a chegada de referências de fora. Para se chegar lá, é preciso muita disposição (física, inclusive), documentação e a autorização do rei. Mesmo assim, recentemente, muito dos hábitos ocidentais começou a chegar ao país. Com o aeroporto, em Paro, com a liberação da internet e, claro, com a influência dos turistas que começam a circular. Há espaço para turismos bem específicos no Butão. Um deles, o de bird watchers. Amantes de pássaros do mundo inteiro vão até lá para observarem, fotografarem e interagirem com espécies raras. Chegam com suas grandes câmaras e deixam muito de seus hábitos e jeitos de viver e viver o mundo por lá. Objetos simples, como o chiclete, são excessivamente valorizadas pelos curiosos butaneses, que sopram bolas pelas ruas com a alegria de uma criança.

6) A supervalorização do pênis
No Butão, o pênis é sagrado. Representa o símbolo da fertilidade e é cultuado explicitamente nas paredes externas das casas. Praticamente toda casa butanesa tem um membro sexual masculino artisticamente pintado, com uma riqueza de detalhes que faz corar qualquer ocidental.

7) O Tiger's Nest
O ponto alto da viagem foi a subida do Tiger's Nest, ou ninho do tigre, uma montanha cheia de mistérios e de desafios. Segundo reza a lenda, o santo Padmasambhava, o Gurú Rinpoche, teria voado até a montanha no lombo de seu tigre, que escolheu o lugar, reconhecendo-o como sagrado.
Subir a montanha, a mais de 3.000 metros de altura é um exercício e tanto. Mais mental do que físico. Fiz parte do trajeto num burro e, de determinado ponto em diante, segui a pé. Dá muita vontade de desistir pelo caminho, mas a paisagem, as mensagens de incentivo dos aventureiros que descem a montanha e a curiosidade em estar num lugar onde tão poucos estiveram redescobre uma coragem que sequer sonhava existir. Ao final, nos degraus da subida definitiva do templo, não dá mais para pensar no quanto falta. No meu caso, decidi “vencer” degrau a degrau, respirar e só me contentar ao chegar ao último deles, sem pensar no tempo, nas pernas adormecidas, em nada.

8) As minhas (descontraídas) conclusões
Mario Quintana já dizia que “viajar é trocar a roupa da alma”. No caso da India / Butão, a frase torna-se ainda mais literal. Me peguei vivenciando situações de um jeito nem eu mesma me reconheci. Quando, na batida frenética de São Paulo, eu teria paciência para esperar quatro horas dentro de um jipe, com sol escaldante, a chegada de um tigre, que sequer havia dado garantias que viria? O que me fez subir uma montanha gigante, com ar rarefeito e ainda assim sorrir o percurso todo? Que lições são estas que os nossos guias nos deram de cidadania, respeito, paz interior e dedicação? Às vezes, trocar de contextos ajuda a exercitar novos olhares e a despertar em nós novos jeitos de ver e viver o mundo. Nas nossas vidas corporativas ou mesmo nas nossas vidas pessoais, esquecemos de exercitar estes novos olhares simplesmente porque estamos “acostumados” demais com nossos contextos. Deixamos de lado as conversas significativas, o tempo para o vazio, o nosso tempo. Sempre foi assim, afinal. Se o FIB é um indicador confiável? Não sei. São os butaneses felizes de fato? Depende. Talvez com nosso óculos ocidental, material, nem um pouco. O que eu vi por lá não se mede com números ou gráficos.

Kadinchey (obrigada, em butanês)

* nota de redação adicionada pela editoria da revista:
Indicadores econômicos tradicionais medem o desenvolvimento dos países pela renda, ou seja, pelo PIB per capta. A preocupação com a qualidade de vida introduziu o IDH, um indicador que considera, além da renda, a educação e a saúde das populações. Mais recentemente, porém, preocupações maiores com sustentabilidade e meio ambiente mostraram a insuficiência desses indicadores. Foi quando o pequeno Butão apareceu no noticiário como um Éden, em cujo isolamento se construiu, ao longo dos séculos, uma civilização de pessoas felizes, governadas por reis bondosos. Ao que parece, lá não há crimes, poluição ou estresse. Lá estaria o povo mais feliz do mundo, não o mais rico ou o mais culto. Como medir isso? Como calcular o FIB de um país? O PNUD/ONU criou, lá mesmo, um centro de estudos sobre a felicidade, em um contexto coletivo, que é dirigido por Dasho Karma Ura.